quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014




Fernando Liguori 


Muitos amigos e leitores de meu blog têm sempre me perguntado sobre a relação existente entre a kuṇḍalinī e a pratica da transmutação sexual. Em meus prévios artigos,[1] mencionei uma técnica denominada ūrdhvareta, que significa sêmen [que flui] de modo ascendente. Eu mencionei também que esta técnica está intimamente conectada a preservação do reservatório de ojas no organismo do yogī. Essa é uma energia sutil conectada ao elemento água (kapha) e representa a reserva de energia vital (prāṇa), a essência dos alimentos digeridos, as impressões e os pensamentos. Quando o conteúdo de ojas é preservado, o yogī sente profunda paz, calma e experimenta profundos estados alterados de consciência.

Mas a transmutação sexual envolve inúmeros processos e acredito que a cura da consciência é um fator fundamental. Da maneira em que nos encontramos, sempre identificados com o exterior, nos esquecendo dos reinos internos nas profundezas de nosso ser, a transmutação não pessa de mera conjectura, uma ilusão criada que, na maioria dos casos, mais atrapalha do que realmente auxilia no crescimento interior.

Para produzir um escrito como este, é impossível deixar de levar em consideração a experiência pessoal e aqui, ela é muito pertinente. Por volta de meus dezesseis anos, estive envolvido com uma organização que pregava com veemência a transmutação sexual como uma forma preliminar para o despertar da kuṇḍalinī. Ainda muito jovem e propenso a absorver os ensinos daquela organização, me lancei a prática de mantra e meditação. Como a organização possuia um aspecto litúrgico e ritualístico, o que me deixava impressionado, devido a minhas inclinações nessa área, me lançava também em práticas desta natureza.

Fiquei nesta organização por um bom tempo. Obtive status nela e devido minha coragem, disciplina e intrepidez, fui consagrado bispo de seu ramo litúrgico antes dos dezoito anos, período em que, posteriormente, me afastei e encontrei uma tradição tântrica fidedigna, a qual permaneço até o presente. Caminhei por outras organizações também, mas o cerne de minha prática sempre foi o Tantra.

Mas o que quero dizer na verdade, é que tirei pouco proveito das práticas e ensinamentos daquela organização, pois faltavam elementos essênciais para o progresso espiritual genuino. A transmutação da energia sexual pede mais e este mais, somente encontrei em minhas lições tântricas e estas, envolviam a Āyurveda e a prática do Yoga.

O Tantra possui uma fórmula particular de terapia, o que inclui a Āyurveda e muitas das técnicas do Haṭhayoga. Esta terapia é baseada na autopurificação de todos os elementos brutos da consciência em todos os níveis, físico, mental e energético (sutil). A purificação física pode ser feita através das técnicas ensinadas pelo Haṭhayoga que, essêncialmente, é uma tradição tântrica. A purificação mental consiste primordialmente da meditação, especialmente na forma da visualização de si mesmo como uma divindade escolhida (iṣtādevatā). A purificação energética atua por meio do controle do prāṇa. A prática da transmutação sexual, segundo as instruções tântricas, necessitam, verdadeiramente, desta purificação a fim de que possa ser efetiva.

Através deste trabalho de cura da consciência ocorre uma satvificação de nosso ser. Essa satvificação é o fruto desta purificação de todos elementos brutos que constituem nossa consciência e uma atenção cuidadosa devemos dar a purificação da energia sexual neste processo.

A Purificação da Energia Sexual

Nossa energia sexual em sua expressão ordinária não pode nos ajudar na prática espiritual, pois ela sempre é dirigida para baixo, se misturando com impurezas e toxinas de todo tipo. Primeiro a energia sexual deve ser purificada e sutilizada. De acordo com a Āyurveda, o corpo é constituído por sete tecidos, os quais são produzidos pelos alimentos digeridos e assimilados. São eles: plasma, sangue, músculos, gordura, ossos, medula óssea e tecido nervoso e tecidos reprodutivos.

Cada um desses tecidos é a transformação do anterior, como o leite que se transforma em manteiga. Cada um se torna menor em substância e maior em potência. Por exemplo, plasma é maior em quantidade do que o fluído seminal, mas o fluído seminal contém muito mais energia concentrada.

O fluído seminal é a substância mais potente no corpo e o produto final do processo digestivo. Embora pequeno em quantidade quando comparado com outros tecidos corporais, ele é muito superior em energia. Ele é capaz de produzir a vida e, portanto, é capaz de renovar a vida dentro do próprio corpo. A energia do fluído seminal é indispensável para qualquer conquista interna na jornada da transformação.

Enquanto ordinariamente nós dirigimos a energia sexual para fora com propósito reprodutivo ou por prazer, a tradição do Yoga[2] ensina que esta energia deve ser dirigida para dentro com o objetivo de revitalização e o desenvolvimento da consciência mais elevada. Para que este processo interno possa ocorrer, devemos inverter a direção ordinária da energia sexual. Contudo, o que deve estar claro é que não é o produto final da energia que necessariamente será sublimado, mas sua contra parte sutil. Se uma quantidade suficiente desta energia sutil não for elevada até o cakra de mil pétalas (sahasrāra) e a energia da consciência não descer até o cakra básico (mūlādhāra), não estamos preparados para empreender práticas nesta área.

O fluído seminal precisa ser destilado e neste processo ele ascende até o cérebro e se torna soma. Isso requer a renúncia de nosso desejo por prazeres externos, oferecendo-os ao fogo da aspiração pela descoberta do Divino que existe dentro de nós. Nosso desejo por prazeres deve ser redirecionado de sua fixação no mundo externo e dos cakra inferiores ao terceiro olho (ājñācakra). Agni, o fogo ou poder da percepção e atenção deve ser dirigido da cabeça a base da espinha, de sua fixação no mundo externo através dos sentidos a sua conexão com a fonte interna de vitalidade. Isso requer a acalmar a mente agitada, afastando-a dos estímulos externos que mantêm a energia da percepção na cabeça e interiorizando-a na percepção profunda e oculta na raiz do inconsciente.

Muitas das práticas apresentadas pelo Yoga ajudam a purificar a energia sexual. Particularmente quando combinadas com o cultivo da devoção. Āsana e prāṇāyāma ajudam a direcionar a energia para cima. Mantra, meditação e cantos devocionais ajudam a direcionar o fogo mental para dentro e para baixo.

A cura da consciência: passos para experiência da kuṇḍalinī
Ela está dormindo? Está recolhida em sua morada? Já não sei nada disso. Acho que tudo que estudei a respeito estava errado. A única coisa que vejo é luz; a única coisa que sinto é calor; a única coisa que escuto é o som do trovão no âmago de meu ser. Será que minha amada começou a se expandir? Sinto que é um fogo oculto que só se manifestará verdadeiramente com o poder espiritual de minha consciência translúcida. (15 de fevereiro de 2001, Diário Vermelho, adestrando a kuṇḍalinī)

No verão de 2001 eu seguia a risca um sādhanā de purificação e transformação interna. Meu guru havia me dado algumas instruções de como eu deveria proceder após minha iniciação (dīkṣā), que ocorrera dois anos antes. Através desta prática espiritual eu sentia que minha mente tornava-se cada vez mais concentrada. Como uma adaga de dois gumes, eu chegava a cortar as raizes dos pensamentos. Mas por pequenos momentos. Eu não sabia muito o que estava acontecendo. Na verdade, tentava não pensar no processo. De certo que enquanto a mente se encontra fixada no exterior, a musa não se expandia. Uma coisa é certa: os saṁskāra fritavam meu ser. Mas eu sentia paz e a angústia que até o ano anterior tomava conta de toda minha estrutura psíquica, naquele momento, não existia mais.

A fim de colocar o processo da kuṇḍalinī em expansão, me lançava nas práticas do haṭhayoga, bījāmantra, saṁyama nos cakra e elementos da natureza, usava terapia com cores, aromas e pedras preciosas. Algumas das instruções que recebi de meu guru são pertinentes aqui. Através delas posso dizer que obtive algum resultado e este, assim acredito, é responsável pelo que hoje eu sou. Continuo praticando, a jornada da transformação é longa, mas de passo em passo o caminho é trilhado. As anotações são de agosto de 2000. Peço desculpas por não reproduzir os detalhes das instruções:

brahmacarya é o passo inicial e fundamental;

moderação na fala;

para purificar o sistema nervoso, pratique haṭhayoga, alimente-se moderadamente e evite excitações;

para purificação dos vāsanā, pratique prāṇāyāma;

para pureza do ser interior, yama e niyama;

para purificar os saṁskāra, desapego e uma atitude de testemunha isolada terão de ser cultivadas;

para pureza de desejos, vairāgya terá de ser desenvolvido;

para purificação da mente (manas), pratique ajapa-japa;

para purificação da inteligência superior (buddhi), mantenha sua determinação firme e estável;

centre sua memória apenas em objetos superiores a fim de purificar citta;

purifique o ego transformando o objetivo de seu sono;

purifique seu ser de sentimentos negativos como raiva e inveja através de viveka;

conquiste a preguiça pelo amor a seu objetivo final;

purifique seu ser de sentimentos inferiores como o pessimismo, o derrotismo ou a dúvida pela paciência;

purifique o rudragranthi praticando trāṭaka e saṁyama;

purifique os cakra e as nāḍī pela prática intensa de Yoga Sukṣma Vyāyama;

purifique todo seu ser através da adoração e união com seu iṣtādevatā.

Através destes passos preliminares ocorre a purificação dos elementos brutos da consciência. Após essa purificação ocorre a satvificação de nosso ser e somente então o processo de expansão da kuṇḍalinī se inicia.

A experiência da kuṇḍalinī

Sinto como se meu corpo estivesse repleto pelo divino. È diferente de saber que o corpo é divino, é sentir profundamente a divindade em cada célula do meu corpo. No estado de vigília sinto que algo está se transformando. Não sei bem o que é. Algo está diferente. Mas quando me deito para dormir, após a meditação final, e o sono chega, sinto o corpo vibrar, como se a energia se movesse através de mim sem nenhuma obstrução. Quando supero os obstáculos iniciais em minhas meditações, adentro a um túnel luminoso e experimento uma felicidade irradiante. Não uma felicidade passageira e frívola, mas uma bem-aventurança que invade todo meu ser. Vejo deuses e espíritos. Lembranças de um passado desconhecido vêm a tona como bolhas de água efervescente. Minha relação com a Mãe Divina agora é outra. Meu Ser se eleva as alturas. (18 de abril de 2001, Diário Vermelho, adestrando a kuṇḍalinī)

Inúmeros são os textos que tratam da kuṇḍalinī e sua grande maioria a descreve como um poder, uma energia, uma vibrante ondulação de poder ou um poder interior que foi colocado em movimento. Portanto, essas descrições acabam por transmitir a idéia de que a kuṇḍalinī é um poder que reside em nós em um estado latente. Mas, de acordo com minha experiência, isso não me parece real. A kuṇḍalinī é um aspecto de nosso próprio Ser, e não algo que o Ser tem ou possui.

Embora o Ser seja uma transcendental experiência enefável e icognoscível, Ele é uma imagem do Absoluto e como tal admite dois aspectos: o estático e o dinâmico. O aspecto estático – na linguagem tântrica da tradição Kaula e Trika da Caxemira – é Śiva (prakāśa), a consciência transcendente que está além do espaço e tempo. O aspecto dinâmico é śakti-ciḍrūpinī, vimarśa-śakti ou kuṇḍalinī, o aspecto imanente que, embora seja dinâmico, se restringiu e se limitou a um espaço restrito de consciência, denominado estado de vigília. Por essa razão, alguns a denominam equivocadamente como princípio estático da consciência, dizendo que ela deve ser colocada em movimento, quando em realidade ela deve ser expandida pela suṣumṇānāḍī, em direção aos portais (cakra) que nos levam à Luz Infinita dos estados de consciência superiores.

Segundo a doutrina Kaula e Trika da Caxemira, somente o Ser é Real. Todo o resto são percepções fenomenológicas e ilusórias de sua atividade ou manifestação. Portanto, o aspecto dinâmico (vimarśa) do Ser de fato é a kuṇḍalinī, caso contrário, Ela seria apenas um fenômeno emergente da cognição.

A relação entre o Ser e a kuṇḍalinī pode ser identificada em sua escensão. Na experiência da kuṇḍalinī a sensação que fica é que o Ser se eleva através de um translúcido túnel luminoso, deixando a consciência do estado de vigília e adentrando ao espaço de consciência do divino. Em outras palavras, a kuṇḍalinī é o Ser em movimento, que deixa para trás sua esfera vivencial na mente instintiva e condicionada (manas), indo em direção à esfera irrestrita onde a Luz é eterna (buddhi). Assim, a kuṇḍalinī-śakti ou vimarśa-śakti é aquilo que realmente somos, nossa verdadeira natureza em essência: um poder infinoto e eterno.

A experiência da kuṇḍalinī-śakti ensina que sua ação está centrada na percepção e atuação da vibração primordial (spanda, spanda-śakti ou prāṇa-spanda), reflexos vibratórios da consciência no estofo de sua própria atividade. Esse estofo é constituídos pelos veículos ou corpos (kośa) em que o Ser se manifesta como consciência individualizada. Neles, a vibração primordial flui através das nāḍī que interliga os cakra, centros ou portais por onde o Ser (como poder) flui de um estado de consciência para outro. Assim, cada cakra atua como um portal que permite o fluxo e refluxo da consciência, entre os diversos universos conscienciais nos quais ela se manifesta.

Desordens na experiência da kuṇḍalinī

Hoje eu me sinto bem melhor. Agora posso afirmar com convicção que a prática influencia em meu trabalho. Após a meditação e energização da manhã, pude trabalhar, digamos, protegido. Mas o que noto em alguns dos pacientes da oitava ala, os quais tento com carinho ajudar, é que seus problemas são, em verdade, desordens da kuṇḍalinī. A terapia alopática de nada adianta. Tão pouco a meditação também. Mas algo dinâmico como o haṭha ajudaria muito. O mais interessante ainda é que noto que não só os pacientes precisam de ajuda terapeutica, mas meus colégas enfermeiros e médicos também. Se não estão loucos, chegam bem perto. (10 de janeiro de 2001, Diário Vermelho, adestrando a kuṇḍalinī)

Em 2001 eu estava começando minha carreira como enfermeiro. No primeiro hospital que trabalhei tive uma das piores experiências de minha vida, se não a melhor! Arranjei um emprego para ganhar poco e trabalhar muito na temida oitava ala do Hospital Psiquiátrico Ana Neri. Ninguém gostava de trabalhar ali, por isso sempre tinha vaga. Eram trinta e oito pacientes com toda sorte de distúrbios mentais possíveis. A grande maioria, simplesmente esquecidos pela família. Como era uma ala pública que dependia do SUS (Sistema Único de Saúde), mal havia material de trabalho. No hospital, a ala era isolada, no alto de uma pedreira e fazia divisão com uma clínica para dependentes químicos do corpo de soldados da polícia militar. O lugar era um buraco no fim do mundo!

No período de oito meses que passei neste hospital tive a oportunidade de colocar em prática tudo o que houvera aprendido sobre Yoga e Tantra. Busquei a beleza nas fétidas fezes espalhadas pelos quartos, a inoscência na loucura e a pureza nos carinhosos vínculos que criei com os pacientes. Isso me ajudou em demasia na experiência com a kuṇḍalinī, o objetivo central do sādhanā tântrico. Neste processo, também me dei conta da importância do laboratório que meu corpo representava e das energias sutis necessárias para experiência da kuṇḍalinī.

O sādhanā tântrico integra uma ciência sutil e uma tecnologia que promove o desenvolvimento de poderes elevados latentes além do complexo corpo-mente. No Tantra nós somos o laboratório. Nosso próprio complexo psico-físico é o campo de experimentação. Não podemos esperar desenvolver as habilidades supra-sensíveis da energia yogī se não cultivarmos a paciência e a determinação de um cientista. Caráter maduro, mente concentrada e continuidade de propósito são necessários.

Se alguém tenta desenvolver tejas ou prāṇa sem o suporte adequado de ojas muitas dificuldades podem aparecer no processo. Essa é a causa das muitas assim chamadas desordens na experiência da kuṇḍalinī que aparecem hoje em dia. Tais desordens usualmente envolvem o desarranjo de prāṇa, tejas e ojas, energias sutis conectadas a experiência da kuṇḍalinī que, muito raramente, expande ou ascende acidentalmente.

Através de ojas temos a capacidade de adquirir e preservar grande quantidade de energia. É como uma grande quantidade de watts em nossa lâmpada (a mente). Tejas é como a corrente elétrica que passa através da lâmpada, enquanto prāṇa é avelocidade da corrente. Se ocorre o aumento de tejas e prāṇa no organismo, mas sem o equivalente em ojas, é como tentar colocar mil watts em uma lâmpada de cem watts. A lâmpada irá explodir! Portanto, muitas das desordens meditativas e principalmente na experiência da kuṇḍalinī ocorrem por insuficiência de ojas no organismo. Isso causa um desequilíbrio que impossibilita ainda mais a capacidade de desenvolver as potentes energias que todos buscamos manipular.

A menos que controlemos nossa energia sexual, a menos que nossa dieta seja pura e nutriva, a menos que tenhamos fé, equanimidade e devoção – a menos que ojas seja apropriadamente cultivado e preservado – nós não teremos a fundação apropriada para empreender práticas intensas de prāṇāyāma, mantra e meditação, mesmo que compreendermos a prática conceitualmente. Se nos lançarmos a estas práticas sem essa fundação nós podemos até conquistar determinadas experiências, mas elas muito provavelmente serão corruptas, ilusórias ou enganosas. Não é suficiente para nosso intelecto (tejas) ser perspicaz. Nós devemos ter um estilo de vida que suporte uma quantidade suficiente de ojas que proporcione a base para prática espiritual.

As assim chamadas desordens da kuṇḍalinī envolvem o movimento errado do prāṇa no corpo, o que causa disturbios mentais, disfunções neuro-musculares, e uma série de problemas e desordens corporais.

Quando a transmutação sexual é mal orientada e sua contra parte sutil não é purificada, ocorre o desequilíbrio em prāṇa, tejas e ojas. O resultado maior, além das irregularidades corporais e desequilíbrios energéticos, é a falta de progresso espiritual e o embotamento mental.

Kuṇḍalinī & iṣtādevatā

Minha comunhão com a Mãe Divina enche o mundo de amor. Nunca estive tão perto da graça como estou hoje. Ela ensinou-me o caminho do coração. Tudo o que antes eu houvera aprendido, agora minha Sagrada Mãe mostrou-me que de nada adiantou. O verdadeiro conhecimento está em Seus pés. Oṁ Mahākalyai Namaḥ. (26 de outubro de 2001, Diário Vermelho, adestrando a kuṇḍalinī)

Eu não conheço seu mantra ou seu yantra. Como eu saberei orar a ti? Eu não sei como chamá-la ou como meditar em ti. Como eu saberei orar a ti? Eu não conheço o seu mudrā Mãe. A única coisa que sei é que tomar refúgio em ti é a única maneira de aliviar minha dor. Pela ignorância de tuas leis, não possuindo nenhuma riqueza, pela indolência, por não ter o poder de agir, eu caio prostrado em teus pés. Perdoe-me Mãe auspiciosa que carrega todos os mundos. Um filho mal nasce às vezes, mas nunca existiu uma mãe má. (Śaṅkarācārya, Oração a Deusa pelo perdão dos pecados, 1-2)

Posso afirmar que minha experiência com a kuṇḍalinī somente ocorreu quando me encontrei absorvido no corpo da Mãe Divina. Sou devoto de Kālī e um de seus aspectos no culto daśa-mahāvidyā é Bhairavī como a kuṇḍalinī. Por volta de 2001, todas as manhãs eu fazia uma adoração (pūjā) a Bhairavī como minha iṣtādevatā para que pudesse lograr a experiência com kuṇḍalinī. Absorvido por um amor incalculável, perceverei em minhas meditações matinais até que a prática pudesse me conduzir a um estado de plenitude e bem-aventurança.

Assim como cada ser humano possui sua forma, personalidade e expressão, cada devatā possui sua individualidade e diferentes maneiras de se expor. Assim como conseguimos compreender as personalidades e os diferentes talentos dos seres humanos, também somos capazes de compreender as qualidades especiais de cada deidade.

Os Deuses e Deusas se tornam vivos para aqueles que operam com Eles, para aqueles que os conhecem na intimidade e na maneira de como se lidar com Eles, pois são forças vivas que adentram a nossa realidade e experiência diária e tocam profundamente o cerne de nossa existência. Em relação a cada indivíduo, cada devatā possui sua própria interação especial, maneira de conhecimento, aparência, dons e poderes.

Geralmente, o sādhaka escolhe um devatā regente como principal foco para sua adoração interna e prática. Um devatā particular se torna seu iṣtā – uma deidade ou forma do divino principal, escolhida para uma adoração interna especial – o qual passará a ter uma atenção especial. Este iṣtādevatā ou deidade pessoal assume grande importância no caminho espiritual do praticante, conferindo-lhe graça interna e ajuda assegurada em seu desenvolvimento. Este é o Yoga da Deidade Interna ou Yoga do Iṣtādevatā.[3]

Patañjali em seu Yogasūtra (II: 44), a escritura clássica do Yoga, diz que a visão do iṣtādevatā é o resultado da prática de svādhyāya ou auto-estudo. A este respeito, svādhyāya não significa somente auto-estudo como compreendido geralmente, mas seguir as práticas espirituais que se adequam a natureza e temperamento individual. A visão do iṣtādevatā nasce do estudo da Divindade interna e inerente a todos nós, nosso próprio Deus ou Deusa interna que é, em si, nossa natureza mais profunda.

Patañjali também enfatiza que īśvarapraṇidhāna ou entrega ao Senhor, o Divino que está dentro de nós, é a chave para a prática do Yoga e para se alcançar o samādhi, o qual ele se refere inúmeras vezes no Yogasūtra.[4] A adoração do iṣtādevatā é um importante método para se conectar a Īśvara, que não é apenas Deus em um sentido abstrato ou impessoal, mas assume formas específicas para nos guiar e ensinar. O iṣtā é nossa conexão pessoal com Īśvara. O Yogasūtra atesta (II: 45) que o fruto de īśvarapraṇidhāna é o samādhi, o estado de absorção e realização, o objetivo final da prática. O iṣtādevatā é a melhor maneira de se aproximar de Īśvara e a chave para o samādhi.[5]

A tradição do Yoga nos provê vários iṣtā-s ou deidades pessoais a serem escolhidas para adoração. Eles podem ser Śiva em suas inúmeras manifestações, Viṣṇu, Devī (nas inúmeras formas da Deusa), Gaṇeśa e Sūrya (o Sol). Os iṣtā-s são uma formulação do Divino nos termos de uma relação pessoal como pai ou mãe, irmão ou irmã, amigo, amante, guru ou mestre. As formas que eles assumem geralmente se desenvolvem nestes termos e constituem nossa família (kula) espiritual.

O iṣtādevatā reflete nossas inclinações, temperamento, tendências e a maneira como nos expressamos. Iṣtā significa nossa escolha, portanto, somos livres para adorar o Divino na forma que desejarmos. Essa escolha deve refletir nossa verdadeira vontade mais profunda, o amor real por nosso Ser interno.

Uma vez escolhido o iṣtādevatā, finalmente criamos raízes no caminho do Yoga e uma ligação profunda que nos conecta a Divina Graça Interior. Quando o Yoga é praticado em harmonia com a deidade interna, naturalmente a prática se torna madura e assume os reflexos de nossa expressão interna. O iṣtādevatā provê a estabilidade da graça que guia nossa prática espiritual e forma uma conexão muito sutil entre o Divino dentro de nós e os poderes da natureza ao nosso redor.

Adorar um iṣtādevatā particular não significa abandonar outras formas do Divino ou práticas espirituais. Primeiro energizamos o iṣtādevatā – a deidade principal – como o foco de integração para todas as práticas que realizamos. Ele energiza outras deidades que adoramos. Em verdade, nós vemos o iṣtādevatā em todas as deidades, estendendo-se ao Absoluto além de todas as manifestações.

Para finalidades práticas, o que se segue são algumas reflexões sobre a Deusa Bhairavī que pode ser usada como iṣtādevatā. Aqui me restringi ao aspecto meditativo da prática.

BHAIRAVĪ: A Deusa Guerreira

Ela que possui a cor de Fogo, radiante com o poder de tapas ardente, não buscando os frutos de suas próprias ações. Em ti eu tomo o meu refúgio, oh Durgā. Reverências a mais bela salvadora que nos libertará. Fogo, liberta-nos novamente, cruzando todas as dificuldades até a bem-aventurança. Seja uma cidade extensa, vasta e abundante para nós, traga paz e felicidade para a prole de nosso trabalho criativo. Fogo, conhecedor de todos os nascimentos, assim como um navio cruza o oceano, nos liberte através de todas as dificuldades. Como o Sol resplandecente em nossa mente, desperte como o protetor de nosso Ser. (Mahānārāyāna Upaniṣad, Durgā Śukta 2-4)

De acordo com os índios Zuni da América do Norte, todos os fenômenos espirituais se enquadram em duas categorias: as belas e as terríveis. Elas não se excluem mutuamente, pois as formas belas e medonhas muitas vezes caminham juntas, como é notado na imagem iconográfica de Kālī. Bhairavī especificamente significa amedrontadora, terrificante e é a forma poderosa, apavorante ou energética da Deusa. Ela representa a radiância do calor transformador, tejas, o poder primordial da energia divina. Este calor nós experienciamos como algo amedrontador, pois ele queima e destrói todas as limitações e ilusões da existência egocêntrica.

Bhairavī representa à ira e fúria Divina. No entanto, sua ira é direcionada para as impurezas que se encontram dentro de nós, assim como as forças negativas que podem tentar interferir em nosso crescimento espiritual. Apesar de uma força difícil de suportar, sua atividade é necessária tanto para nos guiar quanto para nos proteger. Bhairavī é a ira proverbial feminina, mais especificamente a ira e fúria da mãe quando vê sua criança em perigo.

Bhairavī como tapas

A força feroz da energia divina existe dentro de nós como o poder do calor transformativo (tapas). Muitas vezes tapas é traduzido como ascetismo, contudo, mais apropriadamente, pode ser traduzido como uma aspiração muito elevada que consome todos os outros interesses e apegos secundários. Quando nós estamos realmente interessados em algo, naturalmente perdemos a atração por outras coisas. Tapas é este interesse real e a profunda absorção na vida espiritual que nos faz não querer nada mais. Tapas é o calor da inquirição espiritual e a aspiração que nos faz descartar tudo aquilo que não é essencial na vida.

Bhairavī como tapas é especialmente adorada por aqueles que procuram conhecimento, por aqueles que procuram ter controle sobre sua energia sexual (brahmacarya) e por aqueles que querem manter-se firmes na disciplina espiritual. Ela dá controle aos sentidos, emoções e pensamentos distraídos (devaneios). Ela nos ajuda durante jejuns, votos de silêncio, retiros de meditação, peregrinações, práticas e retiros celibatários, ou qualquer outra disciplina espiritual (tapas) concentrada que nos empenhamos em fazer. Seja qual for o obstáculo que se oponha a nossa prática de tapas, podemos chamar por Bhairavī para que nos auxilie a eliminá-lo.

Bhairavī como a mulher guerreira
Bhairavī é a forma feroz da Deusa e esta conectada com Caṇḍī, a Deusa feroz e principal deidade do famoso Devī Māhātmyam (A Glória da Deusa), o grande poema de setecentos versos (também conhecido como Durgā Saptaśatī ou Caṇḍī Pāṭhaḥ) que celebra a destruição dos demônios por Ela. Bhairavī é a mulher como guerreira, cujo poder da divina palavra e fogo espiritual elimina todos os obstáculos para o despertar da verdadeira consciência. Como Caṇḍī ou a destruidora de toda oposição, ela pode ser invocada para remover os obstáculos que nos atrapalham a atingir qualquer um dos quatro objetivos da vida: satisfação (kama), prosperidade (arṭha), reconhecimento (dharma) e liberação (mokṣa).

Bhairavī no corpo

Bhairavī mora na base da espinha, no mūlādhāracakra. Ela é identificada com a própria kuṇḍalinī, mais especificamente em seu aspecto desperto onde purifica nossa natureza.

Imagem iconográfica de Bhairavī

Bhairavī possui a refulgência de mil sóis nascentes. Ela possui três olhos e acima de sua coroa brilha a lua crescente. Sua face transmite paz e felicidade com um suave sorriso. Ela usa um vestido vermelho (geralmente feito de seda), seus seios estão cobertos com sangue, e ela é adornada com uma guirlanda de 108 crânios humanos. Ela tem quatro mãos, carrega um rosário e um livro. Ela faz o gesto do conhecimento e dá bênçãos com suas outras duas mãos. Às vezes, ao invés de fazer o gesto de conhecimento, ela faz o gesto que dispersa o medo. Está sentada sobre um lótus. Às vezes é caracterizada estando sobre um cadáver. Ela sempre se apresenta em uma luz ardente.

Bhairavī é a personificação da luz e do fogo, sempre representando a vitória da luz. Portanto, ela não carrega armas. Ela é a Deusa que retorna da destruição de todos os demônios ou forças negativas.

Mantra de Bhairavī
O mantra de Bhairavī consiste da junção de três bījāmantra-s:

Hsrain hsklīṁ hssrauḥ

Este mantra tem o poder de descobrir e destruir toda negatividade. É um mantra muito poderoso que sonda nossa psique e revela as energias negativas nela contidas, arrancando-as e aniquilando-as. Ele é como uma tocha flamejante que invade os recantos escuros da mente limpando qualquer força obscura que nela esteja contida. Portanto, ele deve ser utilizado com discriminação. Hs é um som assobiado que faz com que o poder interno da Serpente de Fogo (kuṇḍalinī) se movimente. Hsr é um som ígneo particularmente penetrante que ajuda a limpar os bloqueios psíquicos.

Bhairavī também pode ser adorada com o mantra svāhā, que significa auto-entrega. Este é o mantra utilizado quando fazemos nossas oferendas ao fogo sagrado.

Caso o leitor queira mais instruções acerca do mantra de Bhairavī, por favor, entre em contato pessoalmente.

Meditação com Bhairavī

Meditação na luz interna é uma maneira de se conectar com Bhairavī. Esta luz interna é expressa através do Terceiro Olho. Ainda, esta luz interna caminha junto ao som interno. Este som interno é chamado de nāda, a vibração do som primordial que ocorre antes da formulação de palavras especificamente articuladas. Contatar a flama vibratória na raiz da mente é estar em comunhão com Bhairavī.

Tapas é outra maneira de adorá-la. É dito que sem tapas (energia concentrada) nada pode ser conquistado no caminho espiritual. Portanto, o aspirante deve consagrar alguma oferenda regularmente a Deusa, preferivelmente algum aspecto de sua própria natureza, como a renúncia de algum desejo, afeto ou prazer. A forma mais elevada de tapas é o controle dos próprios pensamentos ou o silêncio da mente. Portanto, oferecer os pensamentos a flama da própria Consciência é uma maneira de honrar a Deusa. Uma outra maneira de honrá-la é oferecer o pensamento concentrado em um mantra, sempre retornando a mente em atenção para ele.

Outra forma de adorar Bhairavī é através do homa ou o sacrifício (havana) do fogo védico. Ainda, ele pode ser executado como uma forma de adoração interna. Neste sentido, deve-se oferecer todos os pensamentos e emoções no fogo da Divina Palavra que habita no cakra raiz. Isso recolhe a mente dos sentidos e a submerge na parte mais profunda de nosso ser. Isso faz com que a fala desça da garganta a base da espinha e se funda com a luz do silêncio.

Notas

1. Yoga, Espiritualidade & Moralidade – primeira parte e Tantra, Neotantrismo & Brahmacarya.

2. Aqui, quando me refiro a tradição do Yoga, quero dizer o escopo total da tradição, que inclui o Tantra e a Āyurveda.

3. Você pode comparar o iṣtādevatā com a versão religiosa ocidental do sagrado anjo guardião, mas de uma maneira mais íntima, uma formulação mais pessoal da divindade conectada com seu Ser mais elevado.

4. Veja I: 23; II: 1, 32 e 45.

5. Isso significa que os princípios tântricos do Yoga do Iṣtādevatā estão presentes e integram a prática do Pātañjala Yoga, sistema muito difundido por inúmeros professores de Yoga no ocidente, mas infelizmente pouco conhecido em profundidade. 


Referências
BHATTACHARYA, B. The World of Tantra. Nova Délhi: Munshiran Manoharlal, 1988.
FRAWLEY, David. Inner Tantric Yoga – Working With the Universal Shakti: Secrets of Mantras, Deities and Meditation. Motilal Banarsidass. Nova Déli, 2009.
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