segunda-feira, 1 de setembro de 2014




Fernando Liguori


A série de artigos «Vida de Yoga» está sendo escrita para responder inúmeras perguntas enviadas pelos leitores do blog Yoga Dṛṣṭi. Temas como o propósito do Yoga na vida, a integração de suas práticas no dia-a-dia de forma equilibrada para que atuem na mente, corpo e espírito, a relação entre o guru e o discípulo, sādhanā, disciplina e estilo de vida yogī etc. Nessa direção, o Yoga Dṛṣṭi apresenta o Yoga na forma de uma medicina sagrada, um remédio em cápsulas a ser tomado todos os dias. Para nós, Yoga é prática, Yoga é sādhanā, Yoga é estilo de vida, Yoga é cultura.


Todos nós temos dificuldade em lidar com as energias negativas de outras pessoas. Por que sentimos que alguém está nos abusando ou está sendo negativo em relação a nós? Por que nós reagimos? A principal razão é que as expressões das outras pessoas afetam e alteram a nossa auto-imagem e, como resultado, nos machucamos. Quando as pessoas se expressam, nós reagimos. Não estamos preocupados com o fato de serem positivos ou negativos, porque reagimos de qualquer maneira. Qualquer que seja a expressão, ela altera o conhecimento e conceito de auto-imagem, nos levando a sentir rejeição, negatividade, abuso ou maus-tratos.

Vamos considerar o tema não a partir do ponto de vista tradicional do yoga, mas a partir de um ângulo diferente. Há uma palavra em sânscrito, svabhava. Bhava significa «natureza» ou «sentimento» e sva significa «pessoal», «eu». Se estamos cientes de nossa natureza pessoal, então situações de conflito, de perturbação mental e emocional, podem ser evitadas. Svabhava é algo muito mais profundo do que a compreensão normal das atitudes, comportamentos, interações e reações. Geralmente, nós reagimos e nos identificamos com as expressões das pessoas, não com a natureza real delas. Em suas expressões externas há uma combinação de egos, desejos, ambições e até mesmo aspectos positivos e negativos. Nós não somos capazes de observar o estado real ou interno das pessoas ao nosso redor.

O exemplo de Rāma é bem vindo. Quando foi exilado por 14 anos, seu irmão Bharata chegou para levá-lo de volta ao reino de Ayodhyā. Ele veio com um exército inteiro e o outro irmão de Rāma, Lakṣmaṇa, pensou que Bharata estava vindo para matá-los e ter certeza de que Rāma nunca seria capaz de recuperar o reino. Mas Rāma disse: «Espere um minuto. Antes de nos preparar para a guerra, vamos considerar a hipótese de Bharata não vir com o desejo de nos matar.» Rāma analisado todo o padrão de vida de Bharata, continuou: «Ele não está vindo aqui para nos matar. Ao contrário, veio com um propósito diferente.»

Nós vemos situações muito semelhantes em nossas vidas. No ano passado, quando estava ministrando um workshop sobre a superação de dificuldades através da meditação, uma aluna perguntou qual era o propósito de estarmos ali. Era um trabalho dividido em módulos e alguns alunos já estavam muito cansados no fim do dia. A pergunta que ela fez foi simples, mas carregada pela sua dificuldade em se locomover e por sua inabilidade na superação de seus problemas. O volume de sua voz foi tão alto que os outros alunos foram surpreendidos com tamanha ênfase e podia se ver em seus olhos uma certa indignação.

Mas naquele momento algo estranho aconteceu em minha mente. Por um breve instante, todo tipo de interação que tive com aquela aluna no período de quatro meses passou pela minha mente como um filme projetado em uma tela. Diferente dos alunos que estavam presentes, procurei ver a situação de outra maneira. Me convenci de que ela não estava sendo nem um pouco negativa e que no seu coração um bebê bem grande clamava por ser escutado. Então sorri e respondi que todos nós iríamos descobrir. Eu procurei não ouvir suas palavras e reagir a partir delas. Tomei um rumo diferente e, a partir de sua pergunta, procurei analisar seu svabhava, sua natureza interior. Não pude ver nada negativo, nenhuma apreensão ou rejeição.

Temos de levar em consideração que sejá lá qual for o tipo de comportamento, isso não reflete, necessariamente, a verdadeira natureza de um indivíduo. Se eu adoecer me transformo na doença? Se alguém tem um ataque de fúria isso significa que é uma pessoa «brava», «furiosa»? Momentaneamente sim. Quando o vento sopra a copa da árvore fazendo as folhas balançarem, o tronco permanece fíme e imóvel no chão. Da mesma maneira, svabhava é tornar-se consciente do que está acontecendo nas camadas mais profundas do ser. Através desse tipo de compreensão muitos dos problemas mentais e emocionais que enfrentamos quando nos deparamos com situações difíceis na vida podem ser evitados. As pessoas não são tão negativas quanto parecem ser ou como conseguimos vê-las.

Para conquistar essa compreensão é preciso treino, trabalho duro sobre nós mesmos. Na medida em que permanecemos na superfície da mente não há dúvida de que estaremos perdidos nas intensas tempestades das situação e circunstâncias da vida e as projeções das pessoas sobre nós. No alto da árvore podemos sentir a intensidade do vento e o medo da queda. Mas na base da árvore o vento não nos parece tão forte. Então o que devemos fazer? Temos de sair da superfície da mente e adentrar em suas profundezas. Da mesma maneira, vivemos o tempo todo na superficialidade dos acontecimentos do dia-a-dia. Isso significa que devemos empreender esforços para ver a Realidade por trás das aparências.

Ao observar os aforismos do yoga e outras escrituras da tradição encontramos algo único. Os conceitos e práticas de pratyāhāra apresentados nas escrituras clássicas podem nos auxiliar na descoberta de nosso próprio svabhava. Quando descobrirmos nosso svabhava estaremos aptos a compreender o svabhava de outras pessoas. Mas pelo que tenho visto, isso é até mesmo difícil acontecer no processo meditativo. Mesmo pessoas que praticam meditação por anos a fio costumam reagir violentamente diante de certas circunstâncias da vida, apresentando de uma forma ou de outra algum tipo de negatividade. Mas por que, mesmo após anos de meditação, as pessoas ainda reagem dessa maneira? Porque sua prática meditativa muito provavelmente não lhes proporcionou conhecimento sobre suas projeções e expressões. Então, qual é a utilidade da meditação nesse processo?

Existe uma prática de pratyāhāra em sequência que abrange essa e muitas outras possíveis situações da vida. Quando falamos que pratyāhāra é a retração dos sentidos e utilizamos o clássico exemplo da tartaruga, existe uma tendência quase unanime em entender esse processo como um «desligamento» ou «desconexão mental». Mas pratyāhāra não é isso. Pratyāhāra é «consciência».[1] Como nos tornarmos conscientes? O primeiro passo é ampliar a abrangência de nossos sentidos. É fazer com que todos os nossos sentidos se estendam ao máximo, nos tornando conscientes de suas inúmeras experiências. É dessa maneira que pratyāhāra começa. Nessa primeira etapa, ampliamos e estendemos os nossos sentidos em todas as direções, estando conscientes das reações naturais e espontâneas que ocorrem devido a essa expansão dos sentidos.

Na segunda etapa de pratyāhāra ocorre uma harmonização dos sentidos ampliados e externalizados com o corpo. Na terceira etapa o mesmo ocorre, adicionando as faculdades da cognição, externalizando-as e internalizando-as. Observar, compreender e harmonizar ocorre em uma quarta etapa. Na quinta etapa nos tornamos conscientes das reações instintivas e na sexta procuramos harmonizá-las. Após todos esses estágios a mente está pronta para entrar no processo de dhāraṇa, a concentração das energias da mente.

Assim, a fim de descobrir nossa natureza, harmonizar as perturbações internas criadas devido a circunstâncias externas e, em seguida, harmonizar os estados que provocam o desequilíbrio, devemos executar pratyāhāra. Desse modo, podemos gradualmente nos elevar além das influências negativas.

Conflitos mentais representam estados internos de desarmonia. Se a mente está harmonizada não existem conflitos mentais. Por que a mente se perturba? Ela se perturba por conta das ambições e aspirações que todos nós temos. A mente fica perturbada pelas nossas necessidades, físicas ou mentais, emocionais ou espirituais. A mente se perturba quando encontramos pontos fracos na vida, algum tipo de deficiência mental ou emocional, até mesmo a falta de força de vontade ou falta de clareza na mente. Assim, temos de ser claros para ver o que realmente está acontecendo, não apenas nos sentimentos, desejos, ambições, necessidades, gostos e desgostos, mas na personalidade de uma forma integrada. Através de pratyāhāra é possível superar qualquer tipo de problema mental, não importa o quão impossível, simples ou difícil possa parecer. Se pudermos fazer um esforço contínuo, então definitivamente soluções estarão disponíveis. A escolha é nossa.

Outro método para superar a negatividade e lidar com as energias negativas é através da fé. Por favor, não veja a fé como um conceito místico ou religioso. A fé é uma força que possuímos. Se pudermos reconhecer a fé como uma força e não como um conceito místico ou religioso, então seremos capazes de lidar com as energias negativas. A fé nos ensina a fluir e não lutar contra a vida.

Na linguagem da filosofia, a negação é o resultado de nossa reação a algo. Um pedaço de carne podre é colocado na nossa frente. Vamos cheirá-lo e a partir desse processo reagimos; essa reação cria uma negação da experiência em particular. Isso é conhecido como dveṣa, rejeição, repulsa. Sentimos o cheiro de um perfume agradável e gostamos da experiência. Isso também é uma reação. Se é bom, nós aceitamos e nos deleitamos. Isso é conhecido como rāga, atração, apego. O que é semelhante em ambas as reações? O que acontece na atração e o que acontece na rejeição? A reação ocorre em ambos. Uma é boa, a outra é ruim.

Se vivemos reagindo continuamente, então a vida é definitivamente um inferno. Como seres humanos, temos de ter a capacidade de discriminar entre as reações positivas e negativas. Nos agarrar a qualquer uma delas irá limitar e nos vincular as forças da mente, criando um sentimento de apego, não permitindo que a mente experimente uma liberdade total.

Mahaṛṣi Patañjali em seu Yogasūtra (II: 33) ensina um método que ele denominou de pratipakṣa-bhāvanam:

[Quando] acorrentado por pensamentos negativos, [seus] opostos [positivos] devem ser cultivados. [Isto é] pratipakṣa-bhāvanam.

No caminho da auto-transformação somos açoitados por pensamentos negativos e paixões «vitarka» devido a velhos hábitos e tendências que criam perturbações e desequilíbrios internos. Ao invés de ceder a eles ou mesmo racionalizá-los, Patañjali descreve uma ação direta: o cultivo ou a ponderação sobre pensamentos opostos, pratipakṣa-bhāvanam. Por exemplo, se você estiver cultivando a honestidade e no seu caminho só aparecem pessoas desonestas e bem sucedidas, pode vir a pensar negativamente que apenas praticando a desonestidade poderá conquistar algo de valor na vida. Isso é vitarka, o lado errado ou negativo do argumento. Quando este argumento negativo é cultivado na forma de uma resolução constante, cria-se um desequilíbrio na mente, o que pode desajustar a caminhada do aspirante. Nesta situação, o oposto da desonestidade, que é a honestidade, deve ser cultivado na forma de uma ponderação e resolução sobre o assunto. Portanto, quando vier à mente que a honestidade não é um valor cultivável e que ninguém recebe nada por ela, você deve estar preparado com um argumento e resolução oposta de que é somente através da honestidade que poderá ser bem sucedido no caminho espiritual. Isso se aplica a inúmeros sentimentos, paixões e pensamentos negativos. Se você sentir ressentimento em relação a alguém, desenvolva pensamentos de perdão. Se houver medo, cultive resoluções corajosas que aumentem a confiança em si mesmo.

Para contrariar as tendências enraizadas de pensamentos negativos, requer-se o uso regular e diligente do saṅkalpa. Como temos visto nos nossos estudos, a mente é como um computador que opera segundo sugestões que foram programadas desde a tenra idade, sugestões danosas que causam sofrimento e infelicidade na vida. Estas sugestões vêm de nossos pais, amigos, professores, da mídia, símbolos e valores culturais que permeiam o mundo. O processo de cura interior requer que cada um de nós enfrentemos todas as emoções e pensamentos negativos de maneira hábil, sem suprimi-los. Isso nós podemos conquistar com o cultivo do saṅkalpa, a resolução positiva. Como sugestão, identifique e classifique em seu diário os pensamentos negativos habituais. Cultive resoluções, afirmações e auto-sugestões opostas às tendências negativas de sua personalidade. Cultive a prática consciente dos dez códigos de reprogramação mental e pondere sobre pensamentos positivos associados a sugestões incisivas. Pratique o perdão e baikharī-brahmacarya.

Anote todas as dificuldades e complexos que possam surgir e preserve essas anotações no local onde executa seu sādhanā. Quando se sentir impaciente e deprimido, vá ao seu local de prática, execute pratyāhāra um pouco e então leia suas anotações e resoluções. Isso lhe trará paz mental e removerá os sentimentos de negatividade e dúvida.

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